13 de dezembro de 2025
Tivi Entrevista

Nem para todos o fim do ano é a “época mais feliz do ano”

As festas podem doer, mas também podem ser oportunidades para romper velhos ciclos, olhar para a própria história com mais verdade.

Por Lays de Almeida

Atualizado em 11/12/2025 | 13:48:00

As luzes acesas, as mesas cheias, as fotos de família impecáveis nas redes sociais e tudo parece comunicar a mesma mensagem: “é tempo de alegria”. Mas, enquanto as vitrines brilham, muitas pessoas sentem exatamente o contrário: angústia, tristeza, sensação de inadequação e até vontade de se isolar.

A verdade é que o sofrimento no fim do ano é muito mais comum e complexo do que imaginamos e não tem nada de errado com quem o vivencia. Sentimentos subjetivos de tristeza, solidão e pressão emocional aparecem com frequência maior nesse período.

O sofrimento existe, mas na maioria das vezes, ele se manifesta como uma angústia silenciosa, discreta por fora, embora intensa por dentro, e não necessariamente como uma crise clínica evidente.

Para muitas pessoas as festividades de final de ano despertam emoções como:

  • sensação de solidão, mesmo acompanhadas;
  • lembrança de perdas (lutos, separações, distâncias familiares);
  • pressão financeira e exaustão com expectativas sociais;
  • ansiedade diante de reencontros familiares.

Na clínica, chamamos isso de melancolia de fim de ano: sentimentos geralmente transitórios, mas que podem ser intensos, especialmente em quem já carrega histórias familiares complexas.


Por que as festas nos afetam tanto?

Se as festas mexem com tanta gente, é porque não são apenas eventos no calendário são cenários simbólicos carregados de memória, história e papel social. Para a psicanálise, a família não é apenas um “núcleo de pessoas”, mas um tecido emocional onde se tecem pertencimento, falta, desejo e feridas e o fim do ano é o momento em que esse tecido é reencontrado, revisitado e, muitas vezes, reaberto.

- As festas reativam papéis inconscientes: todo sujeito ocupa um lugar específico dentro de sua família: o que apazigua, o que não fala, o que provoca, o que cuida, o que “nunca está à altura”.

Nas festas, esses papéis aparecem quase sem esforço, como se estivéssemos entrando novamente em um palco.

- A transmissão transgeracional do sofrimento: traumas, padrões emocionais, segredos e silêncios familiares passam de geração em geração.

Encontros familiares têm o poder de trazer à tona velhas dores que nem sempre são nomeadas, mas são sentidas.

O que foi reprimido, escondido ou não elaborado costuma bater à porta com força quando o calendário vence dezembro.

- A fantasia social da “família perfeita”: A cultura cria um ideal:

“Família reunida, mesa farta, alegria garantida.”

Quando a história real não corresponde ao ideal, a pessoa sente vergonha, falha, inadequação, ainda que não seja responsável por nada disso.


Estruturas familiares que influenciam a vivência do fim do ano

Aqui estão alguns caminhos para compreender por que cada um reage de maneira tão diferente:

Famílias rígidas, controladoras ou autoritárias

Pessoas que cresceram em ambientes assim podem sentir:

  • culpa por não corresponder às expectativas;
  • ansiedade antecipatória pelo reencontro;
  • medo de “estragar” o clima.

O fim do ano vira um teste silencioso de performance emocional.

Famílias negligentes ou afetivamente ausentes

Quem cresce sem afeto consistente pode sentir:

  • um vazio intenso nas festas;
  • sensação de não pertencimento;
  • raiva ou tristeza ao ver outras famílias “funcionando”.

O ritual, que deveria simbolizar união, lembra a falta.

Famílias marcadas por trauma, perdas ou violência

Encontros podem despertar:

  • memórias reprimidas;
  • defesas psíquicas antigas (fechamento, irritabilidade, retraimento);
  • repetição de padrões dolorosos.

Nesse caso, o feriado deixa de ser festa e se torna gatilho.

Famílias acolhedoras e flexíveis

Pessoas oriundas de ambientes mais seguros tendem a vivenciar as festas com menos angústia, porque:

  • há espaço para autonomia;
  • limites são respeitados;
  • não existe cobrança de performance emocional.

Esses ambientes funcionam como “base segura”, mas isso não significa que quem não teve isso esteja condenado ao sofrimento.


Não sentir alegria também é humano e legítimo

Existe algo profundamente adoecedor nessa cobrança silenciosa de que todos deveriam estar felizes, ao mesmo tempo, pelo mesmo motivo, como se a vida emocional obedecesse a calendário.

As festas são rituais, e rituais carregam símbolos. E símbolo nenhum é neutro. Eles tocam camadas muito antigas da nossa história, despertam lembranças, feridas, ausência e cada pessoa tem um inconsciente único, marcado por vivências que não se apagam só porque o mundo decidiu celebrar.

A psicanálise não oferece soluções prontas, mas oferece compreensão e isso já muda tudo. A partir dessa compreensão, algumas orientações podem ajudar:

1. Nomear o que se sente: não lutar contra a angústia já é um começo.

É normal e humano. E não precisa ser performado nem escondido.

2. Estabelecer limites: limitar tempo, conversas e espaços pode ser um ato de cuidado. Você não precisa reviver padrões que te machucam.

3. Criar novos rituais: rituais não precisam ser herdados e podem ser construídos. Uma ceia diferente, uma viagem, um encontro simples, um momento só seu.

4. Formar sua “família escolhida”: às vezes, afeto não vem de laços de sangue, mas de laços de confiança.

Amigos, parceiros, colegas, pessoas que acolhem e reconhecem.

A psicanálise valida essa possibilidade: o pertencimento pode ser reconstruído.

5. Buscar apoio quando o sofrimento persiste: Se a angústia ultrapassa o suportável, ou se há depressão, ideação suicida ou exaustão emocional, buscar ajuda profissional é um gesto de responsabilidade consigo.


As festas podem doer, mas também podem ser oportunidades para romper velhos ciclos, olhar para a própria história com mais verdade e, aos poucos, construir algo novo, pois nem sempre teremos a família que desejávamos, mas podemos criar vínculos mais saudáveis, experiências mais autênticas e rituais que nos representem.

O fim do ano não tem obrigação de trazer alegria.

Mas quando é vivido com honestidade, ele abre espaço para algo muito mais real: transformação.


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Lays de Almeida – Psicanalista
Siga no Instagram: @layscdealmeida

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